domingo, 15 de outubro de 2017

DIAS DE INFÂNCIA, MEMÓRIA DA FAZENDA DO FUNDÃO: OBRA-PRIMA DO DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO

O cartaz do filme, lançado em agosto de 2015,
na Casa da Cultura Câmara Torres, no Bairro Histórico de Paraty.
(Divulgação)

O Saco do Fundão, visto de satélite.
(Divulgação)



Marcelo Câmara*

O Fundão é um paradisíaco fundo de golfo, quase um pequeno fiorde, no litoral sul de Paraty, RJ, entre a Ponta Grossa e o Saco do Mamanguá. O Saco do Fundão. Era a sua costa, em meados do Século XIX, uma de muitas glebas de terra de Domingos Feliciano Corrêa, grande proprietário de fazendas, produtor rural, patriarca de grande descendência, famoso pelas Cachaças que fabricava, inclusive estabelecendo o primeiro engenho a vapor em Paraty no final do Século XIX. Porém, a legendária Fazenda do Fundão não foi obra de Domingos, mas construída e consolidada, no início do século passado, por um de seus filhos, Pedro Erasmo de Alvarenga Corrêa, conhecido como Seu Peroca, outro afamado fazendeiro, brilhante alambiqueiro, exímio administrador rural.

De barco, rumo à Praia do Ubá, na Fazenda do Fundão, no fundo do golfo.
(Divulgação)
A Fazenda do Fundão foi um belo sítio de produção agrícola, com casa grande, lago, engenho com roda d’água para produção de Cachaça, rapadura e melado, paiol, curral de leite, pátio para secagem de feijão e cereais, inúmeras espécies silvestres e frutíferas, canavial, várias lavouras, pomar, criação de gado e de muitos animais, hortas, variados cultivos, praia, mangue. O Fundão fez história pela excelência de seus produtos e pela maneira notável, então moderna e eficiente, de como era bem administrada. Pai, com Domingas Ayres Corrêa, de prole numerosa – treze filhos, dois homens e onze mulheres - e laureado aguardenteiro, Seu Peroca produzia as célebres e premiadas marcas de Cachaça: Branca do Peroca, Azulada do Peroca e Branca do Fundão. Algumas garrafas delas tenho orgulhosamente comigo, e as bebo em dias extraordinários. Uma tradição oral em Paraty informa que o Seu Peroca inventou a Cachaça azuladinha, no início do Século  XX, colocando folhas de tangerina ou de laranjeira, na panela do alambique. Assim como fora o criador também de três tipos, denominações, de Cachaças especialíssimas, compostas, maravilhosas, incolores, transparentes como água, que só existiam em Paraty: a Laranjinha, a Lourinha e a Canelinha, com os sabores sutis, discretos, ao final do gole, da laranja, do louro e da canela, respectivamente. Hoje, nenhum alambiqueiro se arrisca a fabricá-las na Excelência Sensorial com que fazia o Seu Peroca e, nas décadas de 1960 e 1970, Ormindo M. Brasil, empregado do Engenho da Dona Quita, que criou e fabricava a Cachaça Coqueiro, uma das melhores do mundo, marca de excelência, hoje de propriedade de um sobrinho-neto do Seu Peroca, destilado que continua primoroso, com a mesma altíssima qualidade. 

A sede da Fazenda do Fundão por volta de 1930. (Divulgação)
Com a morte do Seu Peroca em 1964, a Fazenda do Fundão foi vendida para um milionário paulistano que a destruiu por completo: aterrou o mangue, viveiro de espécies e habitat de aves marinhas, dizimou pomares e matas nativas, todas as benfeitorias (casa, engenho etc.), provocou erosões no solo, enfim arrasou o Fundão. Eu, na juventude, ainda alcancei ruínas e a bela e imponente roda d’água do engenho. Triste, desolador. Criminosa a terra arrasada que se consumou.

Garça sobrevivente no Saco do Fundão.
(Divulgação)
A filha caçula do Seu Peroca (apenas ela e uma irmã estão vivas), a professora e escritora Maria Thereza Corrêa Ermelich, hoje com oitenta anos, vivia em São Paulo, SP desde o casamento em 1962 e, nas suas vindas a Paraty durante o desmonte do Fundão e, finalmente, com a sua destruição total, sofreu, chorou, se amargurou muito. A partir de 2002, ela e o marido resolveram viver definitivamente em Paraty. Maria Thereza, a Teleca, se transformou numa surpreendente escritora, uma cronista de brilhante memória e senso etnográfico, uma artista de grande talento. Em 2016, ficou  viúva, retornando a São Paulo, onde vive atualmente.



Seu Peroca, Dona Domingas e nove dos treze filhos.
(Divulgação)
O documentário longa-metragem Dias de Infância – Memória da Fazenda do Fundão, de Tati Beck, de 2015, é uma extraordinária obra de arte. Belíssimo! Um filme para chorar, sorrir, pensar, amar. Admirável, majestosa, impressionante a capacidade da cineasta para recriar, atualizar, sublimar e eternizar, cinematograficamente, como arte cinematográfica, como Cinema, os dois preciosos livros artesanais de Maria Thereza Corrêa Ermelich, atualmente com oitenta anos. São eles: Histórias Frutíferas – Lembranças da infância na Fazenda do Fundão em Paraty (Ed. da autora, 2ª ed. revisada, Paraty, 2010), o primeiro a ser lançado, em 2008: e Lembrou-se, Xiba e Zepelim – Histórias da antiga Fazenda do Fundão em Paraty (Ed. da autora, 2ª ed. revisada, Paraty, 2009), lançado em 2009. Para escrever e publicar os dois livros, Maria Thereza teve a valiosa assessoria editorial de Sylvia Junghähnel, uma paratyense de coração, de origem germânica, pedagoga, consultora e guia de Turismo, especializada em Atrativos Naturais e Observadora de Aves, que organizou ambos os trabalhos, inclusive escrevendo a apresentação do primeiro.


Maria Thereza desenhou as capas dos seus livros com lápis de cor.
(Divulgação)
Além de realizar, em imagens e som, os dois livros de Maria Thereza, a diretora Tati Beck os enriqueceu ainda mais com a gravação de tesouros sociológicos que são os depoimentos, as memórias, os personagens, a narrativa, as paisagens, os fatos, os bens, os dotes, os dons da tradicional Família Alvarenga Corrêa e da Fazenda do Fundão, seus habitantes, amigos e contemporâneos, de 1920 a 1960. Uma época e a sua inestimável fortuna humanística, histórica e ecológica. O filme de Tati Beck é mais seminal, mais primacial, do que as próprias fontes que o inspiraram, isto é, os maravilhosos livros de Teleca. Evidentemente, não me abstenho de louvar o alto valor socioantropológico, etnográfico, cultural, dos livros da Maria Thereza. O que quero assentar é que a arte de Tati Beck, o seu “fazer cinema” chegou à genialidade, ultrapassou, quilometricamente, os meros recursos, os próprios assuntos cinematográficos iluminados e as ferramentas de que dispunha. Não se limitou a ilustrar as obras de Maria Thereza, colocá-las na tela. Superou, com fidelidade, engenho e ternura, todas as dificuldades e limitações de uma produção cinematográfica independente, que não contou com patrocínios ou apoios públicos ou privados. A façanha foi alcançada. Os desafios não estavam apenas nas ausências, nos idos, nos vazios. Foram reais as dificuldades de toda sorte, para reconstruir, com sabedoria, técnica e arte, um tempo, muita vida, um universo inteiro. Mas, principalmente, pela sua invenção sem invencionices, o seu poder de enunciar, comunicar e emocionar sem apelos baratos, sem lugares-comuns, sem cambalhotas tecnicistas, erráticas e falsas.

Assim como prometi à Maria Thereza escrever e publicar uma crítica aos livros dela, ouso, aqui, rabiscar e divulgar, dizer algo sobre o documentário Dias de Infância, Memória da Fazenda do Fundão. Tenho notícias das dezenas de outros filmes que Tati Beck roteirizou e dirigiu em vários países. Mesmo sem conhecê-los, e imagino que sejam excelentes, assevero, sem risco, pelo que vi neste filme que Tati Beck é uma artista inteira, brilhante, criadora de uma obra-prima no gênero “documentário”. Trata-se de um filme para ser visto, sentido e aplaudido, para ser alimento, poesia, arte, sonho e reflexão, denúncia sempre, pronto para arrematar muitos prêmios em festivais no mundo.

Acesse:


e assista a essa maravilha da Cultura Brasileira.



(*) Jornalista e Consultor Cultural 

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